Vinhos proibidos: produtores pedem mudança na lei para ampliar mercado


Atualmente bebida artesanal só pode ser comercializada no mesmo local onde é produzida

As ruas de Garibaldi, no interior do Rio Grande do Sul, estavam desertas naquela noite fria de junho. No topo de uma colina, um homem barbudo abre a garagem da sua casa e mostra os tanques de plástico, os barris de carvalho e uma prensa conhecida como torchio. “É aqui que o crime acontece”, ele confessa. O delegado da cidade e agentes da fiscalização agropecuária vistoriaram o local no dia 7 de junho de 2016. Desde então, tudo o que Eduardo Zenker faz em sua vinícola está sendo controlado pelo governo.

Conhecida na Serra Gaúcha pela qualidade do vinho artesanal, a Arte da Vinha de Eduardo Zenker produzia 5.000 litros da bebida por ano, em lotes de até 400 unidades. A apreensão do último lote pelos fiscais da Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul, em função de denúncias sobre irregularidades sanitárias, provocou reações no setor. Um grupo saiu em defesa da vinificação em pequena escala e com o mínimo de intervenções. “São vinhos totalmente diferentes dos convencionais”, explica o vinhateiro.

Após uma quebra ter reduzido pela metade a safra de 2016, em função do clima adverso, o Brasil produziu 340 milhões de litros de vinhos e espumantes no ano passado, com apoio da crescente produção do Vale do São Francisco (4 milhões de litros). O país ocupa o 16o lugar no ranking mundial da oferta de uva, próximo da Grécia, mas continua longe de ter alguma relevância nas exportações de vinho, como o Chile (quarto maior exportador).

“Sempre fiquei muito frustrado por sermos a última nação a entrar no rol dos grandes vinhos, sendo que a Califórnia começou a produzir depois de nós”, lamenta Marco Danielle, do Atelier Tormentas, de Canela (RS). Atualmente, os Estados Unidos são o quarto maior produtor e sétimo exportador da bebida.

O produtor antecipou o movimento que hoje envolve Eduardo Zenker e outros produtores da Serra Gaúcha. Ele começou a produzir em 2002 e aprimorou suas técnicas após uma visita à França, em 2010, dispensando o dióxido de enxofre (SO2), conservante exigido por lei. Seu pinot noir, uva clássica da Borgonha, coleciona elogios de sommeliers famosos e comparações com os melhores borgonheses. Em 2012, foi eleito um dos cinco melhores do mundo por um renomado especialista holandês na feira de vinhos de Amsterdã.

DENTRO DA PORTEIRA

Marco recebeu a reportagem no galpão que está construindo para transferir sua vinícola. “Estou em franco processo de legalização, em função da caça às bruxas que está acontecendo”, ele diz. Como um “tesouro escondido”, suas garrafas ficam em uma adega subterrânea e são vendidas diretamente para os clientes. “Quem faz vinho artesanal está foragido neste país”, afirmou. “O vinho brasileiro foi achincalhado até que os artesanais começassem a melhorá-lo. É ridículo o que está acontecendo.”

A legislação do setor vitivinícola envolve 30 decretos, explica Kelly Bruch, que representa o Brasil na Organização Internacional do Vinho (OIV). Para ter registro oficial, é preciso cumprir à risca a Lei do Vinho (7.678/1988) e a Instrução Normativa no 5, de 31 de março de 2000, do Ministério da Agricultura. Os pequenos produtores consideram inviável cumprir boa parte dessa legislação, por causa do alto custo. Não são poucas as obras que devem ser feitas em qualquer projeto de vinícola para atender, por exemplo, às regras que dispõem sobre instalações e logística.

A legislação prevê que os produtores da agricultura familiar podem produzir até 20.000 litros por ano, mas, para serem considerados como tal, devem plantar 70% da uva vinificada e vender a bebida somente da porteira para dentro ou em feiras do segmento. “Em algumas situações, os produtores são pequenos, mas não são da agricultura familiar, então não conseguem se enquadrar”, diz Kelly.

No caso de Eduardo Zenker, o enquadramento na agricultura familiar seria impossível, pois ele cultiva apenas 1 hectare de uva, depende da produção de terceiros e vinifica um volume quatro vezes menor que o mínimo estabelecido por essa lei.

O caso dos outros produtores é similar – eles costumam trabalhar com matéria-prima de fornecedores, cuidadosamente selecionada. Além disso, como fazem vinhos de alta qualidade, estão voltados para demandas urbanas distantes das suas propriedades. “Nosso mercado está em São Paulo e no Rio de Janeiro”, observa Eduardo.

Para o chefe-geral da Embrapa Uva e Vinho, Mauro Zanus, a legislação rigorosa é importante para garantir a segurança alimentar. Ele lembra que, há 30 anos, na Itália, um produtor utilizou metanol no vinho, matando um consumidor e causando cegueira em outros. “Os italianos perderam o mercado americano durante dez anos por causa disso. O dirigente acredita, no entanto, que o Brasil tem mais chances de dar destaque ao seu produto com os vinhos artesanais. “O produtor artesanal tem uma tendência muito maior de valorizar o produto, por isso é importante rever a legislação.”

Na visão dos produtores, para quem um dos segredos do ofício é o mofo que se acumula nas paredes da cantina, o uso de aditivos e a esterilização, previstos em lei, são fatores contrários à qualidade. “É tão louca a coisa que querem provas do que você não bota no vinho, mas é permitido utilizar centenas de substâncias”, diz Lizete Vicari, do Domínio Vicari, que começou a produzir vinhos em 2007, em uma garagem na Praia do Rosa (SC). Hoje, ela produz, em média, 1.500 garrafas por ano no porão de casa, em Monte Belo do Sul (RS). Lizete pretende investir na vinícola para não correr mais riscos.

Ela foi a primeira produtora, entre os colegas de Eduardo Zenker, a ser fiscalizada, em 2013, quando ainda morava em Santa Catarina. Um dia antes, seu vinho, bem como o de Eduardo e Marco Danielle, tinha participado de uma degustação em Paris. Os fiscais foram informados por meio de uma denúncia anônima. “Viram a quantidade de pipas que eu tinha e isso não configurou como comercialização. Mas fiquei um mês sem abrir a cave, com medo de perder tudo”, lembra a produtora.

Na capital paulista, os vinhateiros gaúchos contam com o apoio da Enoteca Saint Vin Saint, que lidera uma campanha para pedir mudanças na lei. “O vinho artesanal remete à história do vinho no Brasil”, observa Lis Cereja, dona do bistrô, que tem uma carta excepcional de vinhos especiais. “Hoje, no circuito internacional, existe uma comoção em cima do vinho brasileiro que nunca existiu, justamente porque os pequenos produtores saíram da mesmice da vinificação convencional”, diz. Seu marido e sócio, Ramatis Russo, considera a legislação de uma natureza draconiana: “Se aplicasse na Europa, afundaria a produção de vinhos que são patrimônio histórico, com 300 anos de tradição, em caves cheias de mofo e poeira.”

Na opinião do especialista em vinhos Jorge Lucki, os artesanais são uma tendência de mercado. “É um nicho com bastante receptividade. O futuro, pra quem sobe um pouco de degrau, é cair fora dos vinhos industrializados”, ele diz. No entanto, ele observa que o fato de a bebida ser produzida fora da norma não garante sua qualidade: “O produtor tem de ter um bom grau de atenção para evitar contaminações.”

Jorge considera, apesar disso, a legislação brasileira inadequada. “As normas estão fora da realidade. Eu sou contra o que fizeram com o Eduardo, mesmo que o vinho não seja lá dos melhores. Se ele for cumprir as regras à risca, nunca vai fazer vinho.”

O fiscal agropecuário Carlos Muller, coordenador geral de vinhos e bebidas do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal do Ministério da Agricultura, explica que a ação contra Eduardo Zenker começou por conta de uma denúncia, após o produtor ter sido entrevistado pelo programa Globo Repórter, veiculado pela TV Globo.

Como Eduardo não detinha nem o registro de estabelecimento nem de produtor, o Ministério da Agricultura determinou uma ação por parte da equipe de fiscalização da Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul.

Segundo Carlos, “a ação fiscal foi empreendida dentro da mais estrita legalidade, observando os preceitos do direito administrativo e os ditames legais que regulam essa atividade. Na ocasião, vários produtos foram apreendidos e o estabelecimento clandestino foi fechado cautelarmente”.

O auditor fiscal José Werlang, que chefia a fiscalização de bebidas na Superintendência do Ministério da Agricultura no Rio Grande do Sul, descreve que “foi uma ação realizada e executada com perfeição, que o objeto trata-se de produção clandestina de vinho, onde foram apreendidos 13.950 litros em péssimas condições, condenados a inutilização”. De acordo com José, o processo foi julgado no Ministério da Agricultura em dezembro em primeira instância.

VINHO ARTESANAL FAZ PARTE DA CULTURA DA FRANÇA

Dupla mais famosa da gastronomia francesa, o queijo e o vinho são os produtos mais tradicionais na produção artesanal e dos quais os franceses mais se orgulham. Para atender aos anseios da maioria dos consumidores franceses – 63% deles privilegiam regularmente o consumo de produtos regionais e 93% o fazem de tempos em tempos (segundo pesquisa da OpinionWay) – e garantir a qualidade dos produtos cada vez mais artesanais, a legislação francesa trata de ser ao mesmo tempo simples e complexa.

A Organização Comum do Mercado do Vinho (OCM) estabelece medidas de controle para os vinhos artesanais. Trata-se das regras inerentes, por exemplo, à classificação do vinho (denominações e categorias), às práticas enológicas específicas de cada categoria de vinho, à rotulagem do vinho, ao consumo e à comercialização, como a simplificação das regras de rotulagem em benefício tanto dos produtores como dos consumidores.

Na França, existem duas formas de produção de vinhos: ou se é cooperado, possuindo uma carta que regulamenta as condições gerais para cada produtor vinculado à cooperativa, ou se é um produtor independente, tido como artesanal. Mas estes seguem as regras da instituição fiscal e de marketing e da comissão de repressão a fraudes. Para cada garrafa de vinho artesanal vendida na França, paga-se uma taxa que varia conforme o teor alcóolico do vinho e a região na qual foi produzida.

Todas essas garantias de produção artesanal rastreadas pelas leis garantem um mercado fiel entre produtores, “cavistes” – lojas especializadas em vinhos artesanais - e consumidores.

Em Montpellier, cidade ao sul da França cercada por regiões de grandes “château” e tradicionais vinhos, cavistes em ruas estreitas por onde passam bicicletas atendem a clientes fiéis aos costumes de vinhos exclusivamente artesanais. Instalada desde 2001, La Cave des Arceaux possui mais de 1.000 rótulos de vinhos artesanais, com garrafas que custam mais de 500 euros.

“Faz parte da nossa cultura. A gente consome o vinho artesanal, assim como as carnes, o leite, os ovos, as frutas e os legumes. Os franceses não são muito adeptos dos produtos industrializados, assim como na Espanha, na Alemanha, em Portugal”, ressalta Isabelle Mangeart, viticultora artesanal em Clos de Nimes, no sul da França.

Desde 2003, Isabelle cultiva as vinhas, produz o vinho e engarrafa em sua propriedade, fazendo parte da revenda própria e parte direcionada às cavistes. Entre as classificações dadas aos vinhos produzidos no país – Vin de France (VDF), IGP, AOP e Vinho Efervescente –, Isabelle produz vinhos IGP e AOP de dez cepas diferentes. O local onde se instalaria para produzir os vinhos não foi uma escolha ao acaso, pois as classificações dos vinhos, mesmo artesanais, exigem padrões mínimos de garantia.

https://revistagloborural.globo.com/Noticias/noticia/2018/05/vinhos-proibidos-produtores-pedem-mudanca-na-lei-para-ampliar-mercado.html

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